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Stella Melo analisa ao microscópio cultura de células na USP.
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ACESSO: 15/01/2016 as 19:58 h
Vestida como uma cirurgiã, a pesquisadora Stella Melo trabalhava em
total silêncio em um laboratório de biossegurança da Universidade de São
Paulo (USP) na tarde da sexta-feira 11 de dezembro. No interior de uma
cabine na qual só circula ar filtrado, ela semeava células de rim de
macaco em garrafas plásticas contendo um líquido rosado nutritivo.
Embora usasse máscara, evitava falar para não correr o risco de
contaminar o material. Dias mais tarde aquelas células serviriam para
reproduzir o vírus Zika, um agente infeccioso que por décadas foi
considerado inofensivo e agora assusta o Brasil e o mundo porque,
suspeita-se, está associado ao nascimento de bebês com o cérebro menor
que o normal, um problema sem cura conhecido como microcefalia
congênita.
Na quinta-feira seguinte, dia 17, a virologista Danielle Leal de
Oliveira usou parte das células preparadas por Stella para iniciar a
cultura de Zika e anunciou em um
e-mail: “Inoculei os vírus
hoje. Estamos de dedos cruzados para ver se eles crescem”. Danielle e
Stella integram a equipe do virologista Edison Durigon no Instituto de
Ciências Biomédicas (ICB) da USP e trabalhavam duro para replicar as
amostras de Zika recebidas do Instituto Evandro Chagas, no Pará. O
objetivo era multiplicar o vírus e compartilhar com grupos do Brasil e
do exterior que planejavam estudá-lo. Interessados não faltavam.
Desde que o Zika ganhou importância mundial em novembro com os casos
de microcefalia, o virologista Paolo Zanotto, colega de Durigon e seu
vizinho de sala na USP, não pensa em outra coisa a não ser conter o
vírus. Especialista em evolução dos flavivírus, o grupo a que pertence o
Zika, Zanotto sabe que é grande o risco de o vírus se espalhar pelo
país – em especial pelo estado de São Paulo, onde se encontra
disseminada a população urbana de seu transmissor, o mosquito
Aedes aegypti. Ele sabe também que só há chance de conter o Zika com um esforço coordenado de pesquisadores, poder público e população.
Por essa razão, ainda em novembro, Zanotto iniciou a mobilização de
virologistas, epidemiologistas, médicos e entomologistas de São Paulo e
do exterior para estudar tudo o que for possível sobre o Zika. No final
de dezembro, 32 grupos paulistas (quase 300 pesquisadores) já haviam
aceitado integrar essa rede de investigação do vírus – que recebeu o
nome informal de Rede Zika – e vários aguardavam amostras de vírus do
laboratório de Durigon para iniciar as pesquisas.
Essa pronta reação foi possível porque, no passado, a FAPESP apoiou a
criação de laboratórios de virologia em todo o estado de São Paulo que
mantiveram forte interação entre si. Muitos deles detêm projetos
temáticos ou auxílios regulares financiados pela Fundação e, para
reativar o trabalho coletivo do grupo, a FAPESP concedeu pequenos
aditivos aos projetos já existentes. Esses aditivos somarão cerca de R$
550 mil e permitirão complementar o trabalho que já está sendo
realizado.
Jean Pierre Peron é neuroimunologista e, entre outras coisas, estuda
em seu laboratório na USP inflamações no cérebro provocadas pelo sistema
de defesa do próprio corpo. Ele é um dos que aderiram à Rede Zika e
está com sua equipe preparada para começar ao menos dois experimentos.
Em um deles, Peron planeja injetar o vírus diretamente no cérebro de
camundongos, com dois objetivos. O primeiro é deixá-lo se multiplicar e
gerar mais amostras para suas pesquisas e a de outros grupos. O segundo,
e mais importante, é verificar se o próprio vírus lesa o cérebro ou se
os danos decorrem de um ataque exacerbado do sistema de defesa contra o
Zika.
Imagens do cérebro de bebês que nasceram com microcefalia e são
filhos de mães possivelmente infectadas por Zika na gravidez em geral
mostram pequenos círculos brancos bem próximos uns dos outros, como as
contas de um colar. Segundo neurologistas, são sinais de calcificação,
uma espécie de cicatriz que se forma em áreas lesadas do cérebro e
ocorrem também em bebês cujas mães tiveram infecção por citomegalovírus
ou toxoplasmose na gestação. No caso do Zika, não se sabe se essas
calcificações são provocadas pelo vírus ou são uma lesão secundária,
resultado de um superataque das células de defesa ao invasor.
Também não se sabe ainda como o vírus chega ao cérebro, como foi
observado em um bebê do Ceará que nasceu com microcefalia e morreu
minutos após o parto. Foi a partir de amostras de vários tecidos dessa
criança que o virologista Pedro Vasconcelos e sua equipe conseguiram
isolar no Evandro Chagas, centro nacional de referência em virologia, as
amostras de Zika enviadas para São Paulo. A suspeita principal é de que
o vírus – assim como outros dos quase 60 da família Flaviviridae, a
mesma do vírus da dengue e da febre amarela – se desenvolva melhor em
células do sistema nervoso.
Um
segundo experimento planejado por Peron pode ajudar a confirmar a
preferência do Zika por células do tecido cerebral e a traçar o caminho
percorrido pelo vírus até o sistema nervoso central. Ele e sua equipe
estão prontos para inocular o vírus em camundongos fêmeas prenhes e
acompanhar o que ocorre com os fetos. “Isso vai permitir verificar se o
vírus chega até o cérebro dos fetos e se causa lesão, morte ou
microcefalia”, disse Peron em uma visita ao laboratório de Durigon na
tarde em que Stella preparava as células para multiplicar o Zika.
O trabalho de Peron com os roedores deve ser complementado pelos
experimentos da bióloga Patrícia Beltrão Braga com células humanas. “A
primeira coisa que precisamos saber é se, de fato, o vírus infecta
células humanas do sistema nervoso e qual tipo de morte celular ele
provoca”, diz Patrícia. Com base nas informações que circulam entre os
pesquisadores e na extrapolação do que se conhece sobre outros
flavivírus, o Zika deve invadir as células do tecido cerebral, mas ainda
não se sabe quais nem como. Essa informação pode no futuro orientar os
médicos sobre qual terapia adotar para tentar conter o vírus ou os danos
que ele pode causar – por ora, no entanto, ainda não há medicamento
seguro para combater o Zika.
Patrícia deve analisar os efeitos do vírus sobre células humanas
usando uma tecnologia inovadora. Ela vai usar células-tronco adultas
extraídas do dente de leite de crianças e reprogramá-las quimicamente
para se transformarem em células mais versáteis, capazes de originar
diferentes tecidos. Cultivadas em uma matriz tridimensional, essas
células, ao receberem os estímulos químicos certos, originam os
diferentes tipos de células do sistema nervoso central e se organizam em
camadas, como se fossem cérebros microscópicos – alguns têm o tamanho
da cabeça de um alfinete.
Patrícia planeja infectar os minicérebros com o Zika e acompanhar as
alterações que surgirem. “Minha ideia é avaliar se o vírus prejudica o
crescimento das células, a produção de proteínas e a formação de
sinapses, que são as conexões entre os neurônios”, diz. “Acredito que os
minicérebros devem permitir termos uma resposta rápida para algumas
questões”, conta a pesquisadora, que participou da primeira reunião da
Rede Zika no início de dezembro. Até aquele momento o Ministério da
Saúde havia registrado a presença do vírus em 18 estados, principalmente
no Nordeste, onde foram identificados os primeiros casos. E o vírus
podia avançar mais.
Uma das dificuldades de planejar ações eficientes para conter o vírus
é que ainda não se conhece seu padrão de circulação na população
brasileira – nem em outras populações. Ninguém sabe com precisão quantas
pessoas já foram infectadas no país nem quantos casos novos surgem por
mês. Também não há dados sobre a taxa de infecção dos mosquitos e a sua
eficiência em transmitir o vírus pela picada. “Com essas informações,
poderíamos calcular a capacidade de a infecção se espalhar”, conta o
epidemiologista Eduardo Massad, da Faculdade de Medicina da USP, que
aderiu à rede.
Um modo de começar a conhecer essas variáveis é registrar os casos de
infecção em tempo real, para ver como evoluem no tempo e no espaço. Uma
das ferramentas necessárias para isso seria um teste de laboratório
confiável para identificar infecções antigas por Zika e saber por onde o
vírus já passou e quando. A forma atual de fazer esse rastreamento é
por meio de exames sorológicos, que detectam anticorpos contra o vírus
no sangue. Esse tipo de teste permite saber se uma infecção é antiga ou
recente, mas não funciona bem no caso do Zika. É que os anticorpos
contra ele são semelhantes aos gerados contra os vírus da dengue, que
ocorre em quase todo o país.
O modo alternativo de averiguar a infecção, já disponível em quase 20
laboratórios da rede pública de saúde, é um teste que usa a técnica da
reação em cadeia da polimerase (PCR). Ele amplifica uma região do
material genético do vírus, mas é mais complexo e exige pessoal treinado
e equipamentos caros. Além disso, ele só permite detectar o Zika quando
a infecção está ativa e a pessoa apresenta os sintomas.
Como boa parte dos laboratórios da Rede Zika já dispõe de
equipamentos para realizar PCR – muitos são antigos membros da Rede de
Diversidade Genética de Vírus (VGDN), equipada com financiamento da
FAPESP –, Zanotto planeja aproveitar essa capacidade instalada para
auxiliar no monitoramento do Zika no estado de São Paulo. A ideia é que
esses laboratórios realizem o diagnóstico molecular de pessoas suspeitas
de estarem infectadas. Assim, seria possível acompanhar quase em tempo
real o avanço das infecções e auxiliar os serviços de vigilância
epidemiológica a combater os focos de infecção ativos.
Há motivos de sobra para a urgência. O verão já começou e com ele o
período de chuvas no Sudeste, onde vivem 82 milhões de pessoas ou quatro
de cada 10 brasileiros. O receio de virologistas, epidemiologistas e
especialistas em saúde pública é de que o Zika encontre um terreno
fértil para prosperar. O vírus é inoculado nos seres humanos pela picada
da fêmea do
Aedes aegypti, um mosquito escuro de pernas
listradas de branco que costuma se alimentar de sangue durante o dia.
Além de sangue, o mosquito só precisa de um pouco de água parada para
gerar sua prole. E já faz alguns anos vem se tornando resistente a
inseticidas (
ver Pesquisa FAPESP nº 147).
Outro motivo de preocupação é que o
Aedes, transmissor
também dos vírus da dengue, da febre amarela e da febre chikungunya, já
se espalhou pelo Sudeste. A evidência mais contundente da presença do
mosquito são os casos de dengue de 2015. No ano passado o Ministério da
Saúde identificou 1,6 milhão de casos suspeitos da infecção no país, dos
quais 990 mil ou 61% ocorreram no Sudeste (718 mil no estado de São
Paulo). É possível, sugerem alguns pesquisadores, que boa parte desses
mosquitos já esteja contaminada com o Zika.
Já faz algum tempo se sabe que o Zika circula, ainda que timidamente,
pelo Sudeste brasileiro. Os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e
Espírito Santo haviam registrado até o fim de novembro uns poucos casos
contraídos em seu próprio território e confirmados por exames
moleculares. Mas não havia uma contabilidade oficial – e precisa.
O primeiro caso em São Paulo foi detectado em 19 de maio, quando o
Instituto Adolfo Lutz, um dos laboratórios de referência para a detecção
de vírus no país, confirmou a presença do Zika no sangue de um homem de
52 anos morador de Sumaré, na região de Campinas. Outro caso foi
registrado em São José do Rio Preto, no noroeste do estado, e mais dois
em Ribeirão Preto, no norte. “É possível que o Zika esteja circulando há
alguns meses no estado, mas não de maneira disseminada”, disse o
infectologista Marcos Boulos, chefe da Coordenadoria de Controle de
Doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. “Caso contrário,
já teríamos a confirmação de problemas neurológicos”, contou na tarde de
14 de dezembro, antes de o secretário David Uip anunciar que seis bebês
com microcefalia estavam sob investigação para infecção por Zika.
Ainda
não se conhece o tamanho do problema. Em meados de dezembro o
Ministério da Saúde publicou um documento no qual faz uma projeção,
ainda com grande nível de incerteza, sobre o número de infectados pelo
vírus no país. Entre 443 mil e 1,3 milhão de brasileiros já podem ter
tido Zika, doença que se confunde com a dengue, mas em 80% dos casos não
gera sinal aparente ou causa, no máximo, um mal-estar passageiro (
ver quadro).
Os autores do documento chegaram a esses números tomando por base
estimativas da literatura médica internacional e os casos suspeitos de
dengue não confirmados por exames de laboratório.
O médico e virologista Maurício Lacerda Nogueira, professor da
Faculdade de Medicina de Rio Preto, é um dos que suspeitam de que parte
dos casos identificados como dengue, na realidade, seja de Zika. Há
quase uma década ele acompanha os surtos de dengue em São José do Rio
Preto e em abril e maio de 2015 identificou algo atípico: casos da
síndrome de Guillain-Barré, doença inflamatória que degenera os nervos,
em pessoas com sintomas de dengue. “Olhando retrospectivamente, pode ter
sido o Zika”, contou. Em breve ele deve testar para o vírus cerca de
300 amostras de sangue do início de 2015 classificadas como dengue –
Zanotto planeja fazer o mesmo com outras 1,2 mil da capital.
Caso o vírus esteja no estado há mais tempo e seja, de fato, o
causador da microcefalia, novos casos podem aparecer em breve. “O pico
de circulação da dengue em São Paulo e, portanto, de circulação do
Aedes
ocorreu entre abril e maio e quem era gestante na época está para ter
bebê”, lembra Nogueira. Ele e seu grupo devem monitorar 2,2 mil pessoas
por cinco anos para verificar a porcentagem de casos assintomáticos de
Zika e o risco de microcefalia nos bebês de gestantes infectadas pelo
vírus.
A suspeita da conexão do Zika com a microcefalia, algo inédito no
mundo, surgiu em outubro. Um mês antes a neurologista pediátrica Vanessa
Van Der Linden começou a identificar um aumento incomum nos casos de
microcefalia no Hospital Barão de Lucena, onde trabalha no Recife, e
notificou a Secretaria de Estado da Saúde de Pernambuco. Em seguida o
pesquisador Carlos Brito, da Universidade Federal de Pernambuco, sugeriu
que o Zika poderia estar por trás dos casos e o problema foi comunicado
ao ministério, que notificou a Organização Mundial da Saúde.
As evidências mais fortes só vieram no fim de novembro, quando
Vasconcelos isolou o vírus do bebê do Ceará e a Fiocruz do Rio confirmou
a presença do Zika no líquido amniótico de duas gestantes da Paraíba
cujos fetos tinham microcefalia. Até 15 de dezembro, o ministério havia
confirmado 134 casos associados à infecção por Zika – em Pernambuco,
Paraíba, Rio Grande do Norte e Sergipe – e descartado 102. Outros 2.165
continuavam sob investigação.
Vários especialistas consultados pela reportagem afirmam que o Zika é
o principal suspeito de causar a microcefalia. Além da conexão temporal
entre os dois problemas, o vírus parece estar se adaptando a infectar
os seres humanos. Em estudo feito com pesquisadores do Instituto Pasteur
no Senegal, o biomédico Caio de Melo Freire, da Universidade Federal de
São Carlos, demonstrou que a linhagem em circulação no Brasil veio da
África via Ásia (
ver mapa).
No caminho, o vírus se humanizou: alguns de seus genes registram a
receita para fazer proteínas de modo mais semelhante aos genes humanos.
Mesmo assim, alguns pesquisadores dizem que são necessários mais
dados para fechar a questão. “Não sabemos, por exemplo, se a
vulnerabilidade do feto se restringe ao primeiro trimestre ou se também é
mais tardia e leva a outros problemas”, lembra o neurologista Fernando
Kok, da USP. “A relação de causalidade é plausível e os sinais são
fortes”, diz o infectologista Celso Granato, da Universidade Federal de
São Paulo (Unifesp). “Mas precisamos ter casos mais bem estudados,
porque podem haver outros cofatores que ainda não conhecemos.”
“Se me perguntassem se Zika causa microcefalia, eu diria que não
sei”, contou o epidemiologista Eduardo Massad no início de dezembro.
Para ele, havia muitas perguntas sem reposta. “Agora, se a causalidade
for comprovada”, completou, “o Zika pode se tornar o Godzilla das
infecções”.
Artigos científicos e outros documentos
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et al.
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CAMPOS, G.S.; BANDEIRA, A.C.; SARDI, S.I.
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Emerging Infectious Diseases. out. 2015.
Protocolo de vigilância e resposta à ocorrência de microcefalia relacionada à infecção pelo vírus Zika –
http://bit.ly/1REOZ2w.