DISPONÍVEL: http://revistapesquisa.fapesp.br/2016/04/19/impactos-visiveis-no-mar/?cat=ciencia
ACESSO: 30/04/2016 as 11:42h
Em janeiro deste ano, ao sobrevoarem o litoral do Espírito Santo e do
sul da Bahia, biólogos, oceanógrafos e técnicos de órgãos ambientais do
governo federal reconheceram os borrões escuros na superfície do mar
formados pelo acúmulo de resíduos metálicos que vazaram do reservatório
da mineradora Samarco em Mariana, Minas Gerais, em novembro de 2015. A
mancha de resíduos, também chamada de pluma, aproximava-se do
arquipélago de Abrolhos, uma das principais reservas de vida silvestre
marinha da costa brasileira.
Os borrões não eram apenas os indesejados resquícios da extração de
minério de ferro de Minas Gerais, mas uma de suas consequências, como se
verificou logo depois. Em meio às manchas verde-escuro havia colônias
de algas e outros organismos marinhos microscópicos – o fitoplâncton –
com dezenas de quilômetros de extensão, muito maiores que as observadas
nos anos anteriores, de acordo com as análises de pesquisadores da
Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
Outra peculiaridade é que os organismos cresciam e se multiplicavam
rapidamente, em decorrência do excesso de ferro dos rejeitos da
mineradora de Mariana que se espalham pelo mar a partir da foz do rio
Doce, onde chegaram no final de novembro. Desde então, levados
continuamente ao mar pelo rio, os resíduos formam uma mancha móvel que
oscila ao longo de 200 quilômetros (km) ao norte e ao sul da foz do rio
Doce, que alterou o equilíbrio marinho, como indicado pela massa de
fitoplâncton, e atingiu pelo menos três unidades de conservação de
organismos marinhos.
“As manchas de fitoplâncton são comuns no verão, mas não desse modo”,
explica Alex Bastos, professor de oceanografia da Ufes, no final de
fevereiro. Análises preliminares indicaram que as colônias de algas são
constituídas por organismos que se formam e morrem em poucos dias, mais
rapidamente que o habitual. A decomposição acelerada dos organismos
consome oxigênio da água do mar, com consequências imprevisíveis sobre
as comunidades de organismos marinhos.
Além disso, a diversidade de espécies havia sido reduzida quase à
metade. Camilo Dias Júnior, com sua equipe de oceanografia da Ufes,
encontrou no máximo 40 espécies de fitoplâncton por amostra analisada;
antes da chegada dos resíduos os pesquisadores reconheciam de 50 a 70
espécies. A hipótese dos pesquisadores e técnicos é de que já poderia
ter ocorrido uma seleção de variedades mais adaptadas ao excesso de
ferro trazido com a descarga dos resíduos no mar.
Nos sobrevoos do litoral do Espírito Santo e da Bahia, Claudio Dupas,
coordenador do Núcleo de Geoprocessamento e Monitoramento Ambiental da
Superintendência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis (Ibama) em São Paulo, observou muitos barcos de
pesca próximos às manchas de fitoplâncton na foz do rio Doce. Atraídos
pela abundância de alimento, o grande número de peixes chamou a atenção
dos pescadores.
Com base nas análises preliminares da qualidade de água e na
observação do cenário, a equipe do Ibama elaborou um relatório técnico
alertando sobre alterações na qualidade da água, prejudicada com a
descarga de resíduos no mar. Com base no documento e no princípio da
precaução – para evitar que a população seja prejudicada pelo consumo de
peixes contaminados –, no dia 22 de fevereiro um juiz federal de
Vitória proibiu por tempo indeterminado a pesca na região da foz do rio
Doce. “Assim que saiu a decisão do juiz, o superintendente do Ibama em
Vitória, Guanadir Gonçalves, pediu-me para fazer um mapa com a
delimitação da área de proibição, que foi para a internet e para os
celulares dos fiscais em campo no mesmo dia”, diz Dupas.
Desde janeiro os movimentos da mancha de resíduos podem ser
acompanhados por meio de mapas gerados pelo Ibama a partir de imagens de
satélites no site governancapelodoce.com.br, mantido pela Samarco. Já o site siscom.ibama.gov.br/mariana
contém imagens de satélite de alta resolução de antes e depois do
incidente, da barragem à foz. Os mapas indicam que os resíduos já
chegaram a 50 km ao sul de Vitória, capital do Espírito Santo, e
atingiram três unidades de conservação do ambiente marinho, o Refúgio de
Vida Silvestre de Santa Cruz, a Área de Proteção Ambiental (APA) Costa
das Algas e uma das principais áreas de desova da tartaruga-cabeçuda (Caretta caretta),
uma faixa de 37 km de praias conhecida como Reserva Biológica Comboios.
“Ainda não é possível avaliar o impacto sobre o ambiente, a vida dos
organismos marinhos e dos moradores da região”, diz Dupas.
Desde que vazou da barragem de Fundão, em 5 de novembro, até chegar
ao mar, a enorme massa de resíduos da extração de minério de ferro
causou uma transformação profunda. Destruiu casas e matas às margens do
rio Doce, provocando a morte de 18 pessoas e de toneladas de peixes e
outros organismos aquáticos. A bióloga Flávia Bottino participou das
expedições do Grupo Independente para Análise do Impacto Ambiental
(Giaia) ao longo do rio Doce em novembro e observou uma intensa turbidez
da água, que dificultava a penetração da luz e a sobrevivência dos
organismos. Os biólogos encontraram camarões de água doce que
sobreviveram ao desastre, mas os organismos bentônicos, que viviam no
fundo do rio, tinham sido soterrados.
Limites incertos
A alta concentração de partículas sólidas que absorvem calor pode ter causado o aumento da temperatura da água para cerca de 30º Celsius. “A água do rio estava quente”, ela notou. As análises das amostras de água coletadas em dezembro ao longo de um trecho de cerca de 800 km do rio, realizadas nas unidades das universidades de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, Federal de São Carlos (UFSCar) em São Carlos e Sorocaba, Estadual Paulista (Unesp) em São Vicente, e na de Brasília (UnB), indicaram concentrações elevadas de manganês, ferro, arsênio e chumbo. As chuvas podem agravar a situação ao lavar as margens dos rios, cobertas de resíduos, e transportá-los ao mar.
A alta concentração de partículas sólidas que absorvem calor pode ter causado o aumento da temperatura da água para cerca de 30º Celsius. “A água do rio estava quente”, ela notou. As análises das amostras de água coletadas em dezembro ao longo de um trecho de cerca de 800 km do rio, realizadas nas unidades das universidades de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, Federal de São Carlos (UFSCar) em São Carlos e Sorocaba, Estadual Paulista (Unesp) em São Vicente, e na de Brasília (UnB), indicaram concentrações elevadas de manganês, ferro, arsênio e chumbo. As chuvas podem agravar a situação ao lavar as margens dos rios, cobertas de resíduos, e transportá-los ao mar.
Por meio de coletas realizadas com o navio Vital de Oliveira Moura,
da Marinha, a equipe da Ufes verificou que 25 km a leste da foz do Rio
Doce os resíduos formam uma camada de 1 a 2 centímetros sobre a lama do
fundo do mar, a 25 metros de profundidade. “Está havendo um acúmulo
rápido do rejeito no assoalho marinho”, diz Bastos, da Ufes, com base em
coletas realizadas desde novembro, logo após o rompimento da barragem (ver Pesquisa FAPESP no 239). “Nem nas maiores cheias o acúmulo de sedimentos no rio no fundo do mar foi tão alto.”
No
início de fevereiro, em uma reunião dos pesquisadores da Ufes com
representantes do Ibama, Instituto Estadual do Meio Ambiente (Iema) e
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Bastos
comentou que a concentração de ferro no fundo do mar havia aumentado 20
vezes, em comparação com os níveis de antes do acidente, a de alumínio
10 vezes e a de cromo e manganês, cinco. Outro professor da Ufes, Renato
Rodrigues Neto, observou que a vazão do rio passou de 300 metros
cúbicos por segundo (m³/s), antes do rompimento da barragem, para cerca
de 4.000 m³/s, aumentando a quantidade de lama com resíduos metálicos
despejada no mar.
As imagens de satélite indicam que os resíduos metálicos podem ter
chegado até o arquipélago de Abrolhos no início de janeiro, embora,
ressalta Dupas, ainda não seja possível diferenciar os sedimentos vindos
do rio Doce, a cerca de 200 km de distância, dos do rio Caravelas, que
deságua na região. Segundo ele, os resultados das análises em andamento
devem ser anunciados em abril.
Vários estudos em outras áreas marinhas têm indicado que os resíduos
industriais podem ir muito além dos lugares onde foram produzidos,
misturar-se com os sedimentos do fundo do mar, aflorando se revolvidos
por redes de pesca, ou ser absorvidos por organismos marinhos. Uma
equipe do Instituto Oceanográfico (IO) da USP identificou metais pesados
(chumbo, cobre e zinco) e compostos orgânicos derivados de petróleo
produzidos na zona industrial de Santos e do polo industrial de Cubatão,
a 15 km do mar, misturados com a lama do assoalho marinho a uma
profundidade de 100 metros e a uma distância de 200 km da costa. Não se
pensava que a poluição gerada em terra pudesse chegar tão longe.
Condições ambientais
As conclusões ajudam a pensar o que poderia se passar no litoral do Espírito Santo e dos estados vizinhos, à medida que a lama da mineradora se espalha. “Os eventos, a rigor, não têm conexão à primeira vista”, disse Michel Mahiques, professor de oceanografia do IO-USP que coordenou os estudos em Santos. O vazamento da Samarco em Mariana foi um fenômeno agudo, com uma descarga intensa de resíduos, enquanto Santos e outros, como a baía da Guanabara, são casos crônicos, de décadas de liberação contínua de poluentes. “O fato comum”, ele diz, “é que existem porções do fundo marinho nas quais as condições ambientais permitem a deposição de materiais gerados pela atividade humana, ainda que a grandes distâncias”.
As conclusões ajudam a pensar o que poderia se passar no litoral do Espírito Santo e dos estados vizinhos, à medida que a lama da mineradora se espalha. “Os eventos, a rigor, não têm conexão à primeira vista”, disse Michel Mahiques, professor de oceanografia do IO-USP que coordenou os estudos em Santos. O vazamento da Samarco em Mariana foi um fenômeno agudo, com uma descarga intensa de resíduos, enquanto Santos e outros, como a baía da Guanabara, são casos crônicos, de décadas de liberação contínua de poluentes. “O fato comum”, ele diz, “é que existem porções do fundo marinho nas quais as condições ambientais permitem a deposição de materiais gerados pela atividade humana, ainda que a grandes distâncias”.
Em um estudo anterior no litoral de Santos, seu grupo identificou
isótopos de césio 137 originários de explosões atômicas ou de usinas
nucleares, nas quais esse tipo de material é gerado. “O césio foi
transportado pela atmosfera e aderiu a partículas muito pequenas do
fundo do mar”, conta. “Podemos chamar esses casos de teleconexões, em
que um evento em um determinado ponto do planeta pode afetar regiões
muito distantes.” Segundo ele, os casos clássicos são os acidentes das
usinas nucleares de Chernobyl em 1986 e de Fukushima em 2011.
“Precisamos lançar outro olhar para o potencial de acumulação de
material no meio marinho”, comenta Mahiques. Seus estudos indicaram que
os poluentes se acumulam principalmente nos cinturões de lama, faixas em
geral com 3 a 4 km de largura e dezenas de quilômetros de extensão, na
chamada plataforma continental, sobre estruturas antigas de relevo. “Há
um efeito a distância. Os sedimentos permanecem em pontos bem distantes
da origem. Duzentos quilômetros foi o limite a que chegamos, mas ainda
não sabemos se poderiam ir mais longe.” Mahiques argumenta que dois
conceitos básicos sobre o funcionamento da plataforma continental
deveriam ser revistos. O primeiro é que a quantidade de materiais do
continente que chega ao mar seria pequena. O segundo é que os ambientes
costeiros retêm a sujeira. “A quantidade não é pequena, nem os estuários
são um filtro perfeito dos resíduos gerados no continente.”
Os pesquisadores analisaram 21 amostras de sedimentos coletadas em
2005 e outras, mais recentes, reunidas por meio do navio oceanográfico
Alpha Crucis. Os resultados indicaram que os níveis de chumbo, zinco e
cobre a 100 metros de profundidade a mais de 100 km da costa eram
próximos aos encontrados na baía de Santos, embora mais baixos que os
limites mais altos do estuário santista, um ambiente próximo à terra que
mistura água de rios e do mar. No estuário, a concentração de chumbo no
sedimento marinho variava de 9 miligramas por quilograma (mg/kg) em
áreas não contaminadas a 59 mg/kg em amostras do fundo do porto,
indicando um aumento de cinco a 10 vezes em comparação com os valores
anteriores ao processo de industrialização. Os autores desse trabalho
afirmaram que os poluentes industriais misturados com a lama no fundo do
mar poderiam facilmente voltar à circulação, como resultado de
movimentos intensos da água ou de atividade humana como a dragagem para a
ampliação de portos ou a pesca com redes pesadas que revolvem o fundo
do mar.
Estudos anteriores de pesquisadores do IO-USP já haviam mostrado que a
descarga contínua de esgotos domésticos e de poluentes industriais na
baía de Santos era provavelmente uma das causas da reduzida diversidade
de organismos marinhos na região, em comparação com áreas menos
poluídas.
Em paralelo, uma equipe da Unesp em São Vicente encontrou níveis
acima dos permitidos em lei de quatro metais pesados – cádmio, cobre,
chumbo e mercúrio – em amostras de água, sedimento e em caranguejos-uçá
dos manguezais dos municípios de Cubatão, Bertioga, Iguape, São Vicente e
Cananeia. Nas regiões com maior concentração desses metais, os
caranguejos apresentavam uma proporção maior de células com alterações
genéticas associadas à ocorrência de malformações (ver Pesquisa FAPESP no 225).
Estudo de uma equipe da Universidade Federal do Rio Grande publicado em
novembro de 2015 associou a contaminação por metal como possível causa
da fibropapilomatose, uma doença específica de tartarugas marinhas,
caracterizada pela formação de tumores benignos sobre a pele, em
tartarugas-verde (Chelonia mydas) de Ubatuba, SP, já que os
animais examinados apresentavam um nível acima do normal de cobre, ferro
e chumbo, em comparação com animais saudáveis.
“Quando pensarmos em legislação e políticas públicas, para fazer uma
projeção do impacto de eventuais acidentes ambientais, temos de olhar
mais longe e rever o conceito de área de influência, já que o efeito
pode ser muito maior do que o imaginado”, disse Mahiques. Bastos, da
Ufes, observou que os danos ambientais podem ser intensos em
consequência de pequenas alterações na concentração de metais na água do
mar, mesmo que os limites ainda estejam abaixo dos máximos
estabelecidos pela legislação ambiental.
Artigos científicos
FIGUEIRA, R.C.L. et al. Distribution of 137Cs, 238Pu and 239 + 240Pu in sediments of the southeastern Brazilian shelf – SW Atlantic margin. Science of the Total Environment. v. 357, p. 146-59. 2006.
MAHIQUES, M.M. et al. Mud depocentres on the continental shelf: a neglected sink for anthropogenic contaminants from the coastal zone. Environmental. Earth Sciences. v. 75, n. 1, p. 44-55. 2016.
SILVA, C.C. da et al. Metal contamination as a possible etiology of fibropapillomatosis in juvenile female green sea turtles Chelonia mydas from the southern Atlantic Ocean. Aquatic Toxicology. v. 170, p. 42-51. 2016
FIGUEIRA, R.C.L. et al. Distribution of 137Cs, 238Pu and 239 + 240Pu in sediments of the southeastern Brazilian shelf – SW Atlantic margin. Science of the Total Environment. v. 357, p. 146-59. 2006.
MAHIQUES, M.M. et al. Mud depocentres on the continental shelf: a neglected sink for anthropogenic contaminants from the coastal zone. Environmental. Earth Sciences. v. 75, n. 1, p. 44-55. 2016.
SILVA, C.C. da et al. Metal contamination as a possible etiology of fibropapillomatosis in juvenile female green sea turtles Chelonia mydas from the southern Atlantic Ocean. Aquatic Toxicology. v. 170, p. 42-51. 2016
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